Um engodo chamado Mário

Genaldo de Melo
Mário estava morando
na comunidade apenas a três meses, na casa mais cara, de um aluguel vultoso. A
residência que ele estava morando corria de boca grande, que já morara um Barão
do açúcar. Sempre calado, silencioso, sem conversar com ninguém, ali ele
residia há pouco tempo. Educado, pois todos os dias e todas as horas ao
encontrar as pessoas da comunidade, sempre lhes corteja com um “bom dia”, “boa
tarde” ou “boa noite”, com um sotaque forte que demonstrava alegria e prazer em
fazer isso com as pessoas da área, que já lhe nutria certa afeição desconfiada.
Todos os dias
impreterivelmente às sete horas da manhã, um carro luxuoso pegava Mário e na
boca da noite lhe trazia de volta. Os fofoqueiros do bairro começaram a fazer
especulações a respeito do rapaz do casarão do Barão. Ora, ninguém sabia da
vida dele, de onde viera, apenas que era misterioso. Parecia que ele era nobre
e trabalhava em alto cargo do Governo. Pois ninguém sai e volta em carro grande
e bonito. Tem que ser do Governo!
Todo mundo é dado a
uma fofoca e onde tem gente que conhece os segredos e as intimidades dos
outros, como numa comunidade popular, ela atinge índices de teoria cientifica.
E olhe que naqueles dias a serpente de varias cabeças da fofoca estava no auge,
rolando solta feita papa-vento. Pois não é que a filha do Galego da Padaria foi
pega na boca da botija, com o motorista do vereador que teve a maioria dos
votos do povo da comunidade! Noivinha de um transeunte que estava a chegar da
Galícia. Sangue doce na língua do povo não deixa de ser doce como a fofoquinha
de língua solta. Fofoca é fofoca! Se o fato aconteceu ou não aconteceu, na boca
do povo miúdo ficou consumado cientificamente que a filha do Galego que
diminuía o peso do pão e cobrava mais caro era puta e pronto. Língua do povo é
assim...!
Mas Mário era um
enigma a ser discutido, debatido, especulado e dissecado aos olhos dos
fofoqueiros dos vizinhos. E isso somente mudou na festa mais popular da
comunidade, a festa do padroeiro local, que envolvia não somente os carolas da
igrejinha local, mas os diversos adeptos dos grupos evangélicos e dos
freqüentadores dos terreiros locais. A festa era popular e profana mais do que
religiosa e envolvia não somente o povo da igrejinha local, ela revestia-se de
uma simbologia comunitária, que todos os membros da comunidade mudavam naqueles
dias da festa. E em pleno domingo Mário apareceu no fino linho, barbinha feita
e perfume que parecia da França. O rapaz que nunca participou de nada desde que
se embrenhou na comunidade, nunca tomou uma mococa velha podre, nunca bebeu uma
cerveja de sem terra, de repente estava ali no meio do povo.
Mário estava
diferente naquele dia, o que aumentou ainda as especulações a respeito do
mancebo, mas para melhor. Diferente e comunicativo estava beijando velhas,
jogando menino para cima, tapinha nas costas e aperto de mão nas mãos calejadas
dos moradores, pagando pinga e latinhas de cervejas pra todo mundo. Naquele dia
de contato com o povo ele tornou-se o homem mais popular da redondeza. Somente
quem continuou não gostando dele foram os cabos eleitorais do vereador que foi
na eleição anterior o mais votado na comunidade. Pois somente faltavam poucos
meses para a eleição e aparece um estranho com cara de anjo a conquistar as
pessoas. Ora, isso é totalmente descabido!
Depois desse dia da
festa, Mário agora era freqüente nos bares, nos atos religiosos, nas reuniões
da associação local e nos finais de semana até era observado conversando nas
esquinas com os maconheiros. E emblematicamente não mais se discutia quem era
Mário. Ele começou a fazer pequenas doações para tudo.
Bingo da associação,
quermesse da igreja, ajuda ao pastor para mutirão, cimento e blocos para
reformar os barracos que ficavam na beira do mangue, padrões de camisas de time
de futebol do torneio de Sêo Índio, prêmios e faixas para a gincana cultural do
grêmio estudantil da única escola publica local, dez caixas de cervejas para o
torneio de dominó do bar de Sêo Lino, trezentas cestas básicas para os moradores
da Rua Nova que sofreram as conseqüências das últimas chuvas de maio, mil reais
de doação para o Pai Dedé, pai-de-santo, comprar a moto usada para o terreiro,
tudo isso Mário de uma hora para outra bancou. As tardes de futebol do
campeonato brasileiro eram regadas à cerveja gelada e “cadorna” no bar de D.
Mundinha. Esta ficara viúva há poucos meses e corria nas más línguas que a
mesma dava seu tempo livre para o jovem Mário. Mas não se comenta a vida de
pessoa tão importante quanto Mário. Ele no espaço de poucos meses era mais
importante que o imperador da China.
Nos três meses
seguintes o mancebo comprou fiado em todos os bares e pequenos estabelecimentos
da comunidade. Não passava três dias e ele pessoalmente ia lá e pagava ao vivo
e a cores, e ainda aconselhava aos negociantes não venderem fiado para não
pegarem prejuízo com os caloteiros. Aonde se bebe uma cerveja é aonde se pode
conversar a vontade com uma platéia solícita pra conversar. E Mário conversava
sobre futebol, novela, filosofia, sociologia, política e assuntos religiosos
que o povo não compreendia, mas adorava o bom papo.
Ele conquistou de tal
forma o povo da comunidade que teve dias de sábado que os cachaceiros no final
da noite pagavam sua conta e recebiam no dia seguinte, porque o caixa eletrônico
não despacha altas horas da noite. Mas a única coisa que o mancebo não permitia
era visita ao antigo casarão do Barão, onde residia. Por isso que ainda havia
especulações a respeito de sua vida, bem como a respeito de um suposto caso com
D. Mundinha, proprietária do bar predileto de visitas nos finais de semana, já
que um maconheiro comentou em língua solta que havia encontrado com eles num
restaurante chique da cidade.
Num dia de sábado
faltando dois meses para acontecer a eleição, Mario escorregou pela comunidade
com um carro do ano, todo brilhoso, que todo mundo teve vontade de dá uma
voltinha no carango. Distribuiu um convite para as pessoas mais influentes da
comunidade para um jantar em sua casa. Do pastor ao líder do time de futebol,
todo mundo que tinha um pouco de influência com o povo foi agraciado com o
convite para jantar no casarão antigo do Barão. Teve gente que quase morre de
inveja porque não conseguiu ser convidado. Ora, jogadores de dominó e
cachaceiros não tem liderança, somente capacidade de reclamar da vida e cuspir
no chão dos botecos. Por que ser convidados a um jantar chique?
No dia do jantar as
portas de Mário estavam abertas para os convidados. Na recepção um moço bem
educado atendia as pessoas e recebia os convites de entrada. No salão de
recepção Mário apresentava o Doutor Barreto, como um ilustre homem do Governo
que veio conhecer a comunidade e o povo querido de Mário. Quando todos os
convidados chegaram, na sala mais ampla Mário convidou todos e apresentou
Doutor Barreto com o candidato a deputado que iria representar os interesses da
população local na Assembléia Legislativa. Dr. Barreto derramou uma verborréia
bonita, falou do projeto de construção da quadra poliesportiva do bairro, da
fábrica que ele iria trazer para gerar emprego para os desempregados, do
projeto do hospital que ele negociara com o Governo e que depois da eleição
começariam as obras, do terreno do Estado ao lado do bar de D. Mundinha, que o
Governo estava disponibilizando para fazer um clube social, e também não se
esqueceu de rasgar roucos elogios a liderança que Mário tinha nessa importante
comunidade. No final Barreto, como pediu para ser chamado, colocou-se a
disposição para atender aos pedidos de todos os presentes.
Todos os presentes ao
jantar queriam realmente alguma coisa que melhorasse a comunidade, mas todos
também queriam favores pessoais. Depois do jantar regado a um bom vinho que os
presentes nunca tinham bebido, parecia que era do Porto, Barreto tirou foto com
todo mundo, anotou todos os pedidos e distribuiu seu cartão de visitas com
todos, colocando de caneta seu telefone pessoal. Para fechar aquele encontro maravilhoso,
Mário desentupiu um garrafão de champanhe francês e todos tomaram seu gole,
inclusive o coordenador da igrejinha e o pastor, com uma foto todos juntos
brindaram ao sucesso de Doutor Barreto nas eleições.
No dia seguinte foram
distribuídos na comunidade boletins informativos do encontro na casa de Mário.
A comunidade não se cabia de contentamento em ver vizinhos tornando-se gente
importante em fotos com o futuro Deputado Barreto no jornal.
A eleição correu de
vento em popa. Somente não participou da campanha de Barreto o pessoal da
oposição da associação porque recebeu vinte mil de outro candidato que já era
deputado. Barreto teve oitenta por cento dos votos das urnas instaladas na
comunidade no domingo das eleições, quando contabilizados os votos. Todo mundo
ligado diretamente a Mário, colocou gente para fazer a boca-de-urna a trinta
reais, para receber no dia seguinte da eleição. Festa nas ruas e bebedeira a
noite toda pela vitória de Doutor Barreto.
Na manha seguinte na
frente do casarão do Barão quase todas as lideranças da comunidade estavam
concentrada esperando Mário acordar para receber os honorários do trabalho do
dia anterior, bem como os recursos da boca-de-urna. Deu nove, deu dez horas e
nada de Mário sair na porta. Meio dia o povo perdeu a paciência e invadiu a
casa e para surpresa de todos não havia nem uma viva alma. A casa estava
abandonada e toda suja como se ninguém morasse ali há muito tempo.
Até hoje a comunidade
liga prá o Deputado Barreto e no outro lado da linha uma voz manda prá caixa de
mensagem. Do mesmo modo, nunca mais ninguém viu o rosto do miserável do bom
moço que era Mário. Deixou mais de trinta mil reais de dívidas somente de
bebidas pelos bares da comunidade, mais de cinqüenta mil reais no material de
construção de Jorge Gordo e dezessete mil reais na padaria do Galego, que
também funcionava como mercearia, na fabriqueta de Sêo Leo, deixou dívida de
oito mil reais dos padrões de futebol que mandou fazer, deu um calote de trinta
mil em Osmar
Barraqueiro, que emprestava dinheiro a juros, e no bar de D.
Mundinha deixou uma dívida do dia da eleição de onze mil reais, pois ela também
lhe adiantou cerca de quatro mil reais para o dia da eleição.
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