Nesse conjunto de contradições existe um potencial organizativo que pode, no médio prazo, contribuir para uma forte retomada das lutas estudantis no nosso país
Editorial da edição impressa 506 - Brasil de Fato
Nos dias 3 E 4 de novembro foi realizado mais um Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Apesar das críticas ao modelo do Enem, boa parte das universidades públicas e institutos federais de educação, ciência e tecnologia adotaram esta concorrida prova nos seus processos de seleção. O Enem tem o mérito de proporcionar provas de caráter mais interdisciplinares, interpretativas, reflexivas, com bom conteúdo crítico e abordando questões importantes do cotidiano e da conjuntura política contemporânea. Superou, nesse aspecto, os tradicionais vestibulares com seu modelo positivista pautado por uma visão mecânica do conhecimento. O modelo antigo de vestibular estimulava uma memorização excessiva de fórmulas e tratava de uma forma quase sempre conservadora as questões sociais.
Mesmo assim, o Enem é uma iniciativa que foi construída ainda dentro de um modelo excludente e fácil de ser capturado pelo poder econômico, ou seja, universidade não é lugar de pobre. Portanto, avançamos pouco na democratização do acesso à universidade pública e institutos federais. Diante desse desafio da sociedade brasileira, vale ressaltar que a realização do último Enem é um marco divisor no que se refere à tarefa de democratizar o acesso à universidade pública e aos institutos federais. Isso porque com a aprovação da lei de cotas, nos próximos 4 anos todas as universidades públicas federais e institutos federais terão que destinar, mesmo que gradualmente, 50% de suas vagas, em todos os cursos, e em todos os turnos, a estudantes oriundos de escola pública, com renda familiar de 1 salário mínimo e meio por pessoa. Além disso, dentro desses 50% estarão contempladas vagas, de acordo com percentual estimado pelo IBGE, para o povo negro, indígena e para pardos.
Além de ser um passo importante para que os setores populares tenham acesso ao ensino superior, essa importante medida vai alterar a composição de classe que freqüenta as universidades públicas. Junto com essa mudança do perfil de classe vem também um conjunto de contradições que farão parte do cotidiano desse contingente estudantil. Sem dúvida, a pauta da assistência estudantil estará na ordem do dia para garantir, por exemplo, a permanência dos estudantes mais pobres na universidade. Como garantir a permanência na universidade das mulheres que são mães e não têm com quem deixar seus filhos? Com creches na universidade, evidentemente. Não há dúvida que os refeitórios universitários serão sobrecarregados. Aliás, muitas universidades públicas não têm refeitórios. Como resolver essa situação? Com mais RUs. São apenas dois exemplos restritos ao campo da assistência estudantil, mas que servem para projetarmos as contradições que estão por se intensificar na universidade pública e institutos federais.
Nesse conjunto de contradições existe um potencial organizativo que pode, no médio prazo, contribuir para uma forte retomada das lutas estudantis no nosso país. É verdade que boa parte desse contingente estudantil vem com o objetivo central de instrumentalizar a universidade para viabilizar não somente sua ascensão social, mas também a ascensão social de sua família. Isso é normal e desejamos êxito na empreitada. Nesse sentido, a adesão ao academicismo, com seu conteúdo despolitizado, pode ser encarada como a maneira possível de viabilizar esta ascensão social.
No entanto, os obstáculos que aparecerão no meio do caminho apresentarão contradições muito mais fortes e com boa capacidade de atrair os estudantes para a luta. Isso dependerá da disposição e criatividade que o movimento estudantil terá para transformar esse potencial organizativo em mobilização de massas. É possível, inclusive, meter uma cunha no academicismo e disputar por dentro do terreno do inimigo. A consciência se forma nas contradições das experiências concretas. Está colocado um grande desafio para a União Nacional dos Estudantes (UNE) e para todas as forças populares. Aliás, é preciso lutar para que as cotas sociais e raciais sejam adotadas também nas universidades estaduais.
A lei de cotas é uma grande conquista para o povo brasileiro. Uma conquista dos pobres, do povo negro que sofre cotidianamente o preconceito racial, dos povos originários que foram massacrados pelo invasor europeu e dos pardos que historicamente ficaram à margem da sociedade como se não fossem dotados de cidadania. A lei de cotas é uma derrota para a classe dominante brasileira e sua natureza histórica autocrática. Não é por acaso que diversos reitores de universidades e seus feudos resistem a esta medida democrática e popular. Esta importante conquista aperfeiçoou o Enem e trouxe consigo um potencial organizativo fantástico. Não podemos esquecer que paralelamente ao desafio da democratização está o desafio da universalização do acesso à universidade.
Comentários
Postar um comentário