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A Primavera Árabe e a reinvenção da pólvora

Por Enio Squeff - Correio do Brasil

Talvez, os jovens que promoveram a Primavera Árabe não fizeram mais do que usar o feitiço contra o feiticeiro. Ou, dito de outro modo, eles reinventaram a pólvora. Ainda bem: o mundo voltou a ser imprevisível. E já não dependemos só dos jornais e revistas para dizermos que existimos e temos direitos.

Primavera Árabe
Ainda bem: o mundo voltou a ser imprevisível

Parece significativo que o que se conhece como “Primavera Árabe” tenha sido literalmente construída com tecnologia de ponta, em cima da rede social e não por mensagens em lombos de camelos, como talvez nossos preconceitos profetizassem. Que as literais revoluções árabes tenham acontecido em países teoricamente atrasados sob o ponto de vista tecnológico, as ditaduras sanguinárias dos respectivos regimes talvez expliquem. ou justifiquem. A revolução bolchevique, ao contrário do previsível pelos primeiros marxistas, aconteceu numa Rússia atrasada e não na Inglaterra, na França ou na Alemanha, onde o capitalismo estava mais adiantado.

O difícil, para os que lidam com a história ou com simples episódios, são as previsões. Antero de Quental nunca tinha pegado numa espada até o dia em que duelou com um autêntico espadachim, Ramalho Ortigão, outro poeta e intelectual português do século XIX. Os amigos comuns dos dois duelistas imaginavam que Quental seria ferido ou morto, mas quem venceu foi ele. Nada demais felizmente para a literatura da língua portuguesa: Quental feriu levemente Ortigão, os dois pararam de trocar espadadas e, a instâncias de amigos comuns, se reconciliaram. O notável é que o imprevisível aconteceu.

No caso dos países árabes, seria de se adivinhar que os jovens egípcios se organizassem em rede, pela internet, e não os jovens franceses que anos antes, tentaram atingir o governo conservador de seu país, não pelos computadores, mas pela queima de automóveis?

São questões difíceis de responder. Na antigüidade helênica houve a literal surpresa de os gregos terem derrotado os poderosos persas – fala-se daquela história que deu na corrida de Maratona e que é ensinada nas escolas como a exceção das exceções. Entre os árabes – sem que se possa falar de qualquer Maratona, o caso é também excepcional. Claro, alguém dirá que a imaginação é o fundamental e é mesmo. Contra todas as opiniões dos especialistas, quando os jovens começaram a sair às ruas, poucos sabiam que nos países atrasados, como os do Oriente Médio, a mais sofisticada mídia inventada pelo homem, seria uma arma não letal – mas infalível. Fica-se a pensar que nem sempre sabemos ao certo quais as inúmeras utilidades de um novo descobrimento.

Tome-se a invenção da imprensa: era imprevisível que ela se transformasse para além da divulgação da cultura alfabetizada, mas a disponibilização da Bíblia a partir de 1439, quando ela se vulgarizou em exemplares relativamente baratos, pode não ser a razão maior da Reforma Protestante – mas foi, sem dúvida, uma contribuição talvez imprevista para que Martinho Lutero operasse a sua ainda hoje elogiada tradução; e a divulgasse para o maior número possível de novos adeptos para as suas doutrinas. A maior parte dos intérpretes do momento histórico em que nasceu a Reforma, fala pouco sobre a mídia, no entanto foi ela quem deu a Lutero, Calvino e outros a possibilidade de reescreverem o futuro.

Num documentário recente saído no History Chanel sobre Galileu Galilei, a ênfase se deu sobre um fato realmente notável: o grande gênio manteve uma correspondência intensa com a sua filha, internada num convento. Pai e filha foram confidentes até onde se possa imaginar a relação de um afeto sincero entre duas pessoas do mesmo sangue. Pelo que fica do documentário, porém, (de resto, muito bem feito, pela BBC) é que quase não se fala da luneta que Galileu aperfeiçoou. Na verdade, foi com ela que o grande astrônomo pode estabelecer seu diálogo com o firmamento.
Concluir que o invento do telescópio primitivo determinou um novo mundo, pode não ser senão uma obviedade – mas a ilação que Stanley Kubrik fez em seu filme, “2001, uma odisséia no espaço”, de que da instrumentalização de um osso pelo homo sapiens teria o condão de se transformar numa estação espacial – aplica-se perfeitamente à essa idéia das mídias, como transformadoras dos mundos. Seu uso pode parecer, a primeira vista, um simples olhar rumo a um porvir administrado.

É evidente, a propósito, que a internet foi criada para fins militares – no princípio uma exclusividade para os países que detinham o melhor da tecnologia eletrônica, para submeter seus vizinhos ou nem tanto, mas menos avançados. Ninguém adivinharia que justamente os jovens de países tidos como atrasados, a usariam exatamente para balançar o poder dos países tecnologicamente preparados para aplacar qualquer de suas veleidade democrática. Ou em desconformidade com o desejo da Europa, dos Estados Unidos e principalmente dos potentados árabes – civis e militares.

Alguém observou que a humanidade avança com os armamentos que cria para a sua autodestruição. Pode não ser só para isso. Um cartaz portado por uma mulher a reclamar o desaparecimento de seu filho, é o mais primitivo que a invenção humana poderia ter engendrado como forma de comunicação entre as pessoas. Para as mães argentinas , conhecidas como “las locas de la plaza de Mayo,” – entre criar um jornal ou panfletos que reclamasse da ditadura em muitos exemplares, os assassínios que o regime estava cometendo e que seriam seqüestrados pelo aparato repressivo como material subversivo – ou uma simples folha de papelão com um protesto escrito à mão – o que pareceu melhor, não foi a invenção secular da imprensa. A própria idéia difundida, na época, pela mídia internacional, de que as mulheres em questão eram “loucas” – além de “viejas”- velhas -foi uma espécie de contraponto à ação quase primitiva do movimento que entrou para história. E que, na verdade, deu um impulso inusitado à queda da ditadura.

Ou seja, de um lado, jovens mais ou menos carentes, a usarem a mais avançada das invenções para derrubarem um governo ditatorial sustentado pela Europa e Estados Unidos ; de outro, mulheres avançadas em idade, simples mães, a arrostarem um regime estúpido e brutal, com não mais que cartazes – um invento da Renascença. Mas que parece não ser muito diferente de alguns textos que as pessoas pregavam a uma estátua no século XV – chamada “Paschino” e que deu origem à palavra “Pasquim”. Era nesses bilhetes que as pessoas falavam mal uma das outras; ou propagavam certas idéias. As senhoras da Plaza de Mayo limitaram-se a enunciar os nomes dos filhos quase em bilhetes- nada da tecnologia dos jovens egípcios; ou tunisianos.

É um paradoxo. A comunicação das mulheres argentinas era primitiva, mas eficaz; a dos jovens árabes altamente sofisticada, mas igualmente profícua. É de se pensar: os chineses inventaram a pólvora muito antes que alguém, no Ocidente, começasse a dar tratos a bola para conceber um equipamento que usasse a mistura de salitre, enxofre e carvão para impulsionar um projétil. Se os chineses tivessem usado a pólvora para outros fins, que não para enfeitar suas noites com fogos de artifício, o Ocidente talvez nunca tivesse chegado, onde chegou.

São hipóteses. O que não é uma suposição, foi o que ninguém previa – que num sistema administrado, onde até a história estaria prestes a terminar – eis que alguns garotos viraram todo um mundo de cabeça pra baixo . Ali, onde todos sabiam ser de exclusiva possibilidade das grandes nações e dos seus avanços tecnológicos, usarem certos instrumentos – foi, afinal, onde tudo se realizou ao revés da propriedade e dos proprietários dos meios de comunicação. Não custa imaginar que o mundo é inventado a cada momento- e que a hora e a vez de uma idéia projetada por um ou vários homens podem tardar, mas acabam acontecendo. Arnold Toynbee, historiador inglês, tem um trabalho sobre a guerra, em que prova, que o avanço mongol sobre o Oriente só acabou quando se depararam com os turcos às portas de Alexandria. Tudo se deu porque o Império Otomano resolveu usar os mesmos métodos de guerra dos mongóis.

Talvez, no fim das contas, os jovens que promoveram a Primavera Árabe não fizeram mais do que usar o feitiço contra o feiticeiro. Ou dito com outras palavras – eles reinventaram a pólvora. Ainda bem: o mundo voltou a ser imprevisível. E já não dependemos só dos jornais e revistas para dizermos que existimos e temos direitos.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.

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